Alexander Moreira-Almeida
Editor convidado. Professor
adjunto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF). Diretor do Núcleo de Pesquisas em
Espiritualidade e Saúde da UFJF (Nupes)
Desde tempos imemoriais,
crenças, práticas e experiências espirituais têm sido um dos
componentes mais prevalentes e influentes da maioria das sociedades.
Profissionais de saúde, pesquisadores e a população em geral têm,
cada vez mais, reconhecido a importância da dimensão
religiosa/espiritual para a saúde. O número de estudos que
investigam a relação entre espiritualidade e saúde tem crescido
exponencialmente. Contudo, existem duas importantes limitações
nesse campo em relação ao Brasil e outros países de língua
portuguesa. Uma delas é que os estudos sobre espiritualidade e saúde
realizados nesses países não são bem conhecidos no exterior. A
segunda limitação é a ausência de uma revisão abrangente da
literatura sobre espiritualidade e saúde, em português, que seja
facilmente acessível a pesquisadores e clínicos de tais países.
Até onde sei, esta é a
primeira revista médica em português a destinar um fascículo
inteiro à espiritualidade e saúde. Espero que este suplemento
especial ajude a sanar as duas limitações anteriormente citadas. A
Revista de
Psiquiatria Clínica
é um periódico com revisão de pareceristas fundada em 1972 e
publicada bimestralmente pelo Departamento de Psiquiatria da
Universidade de São Paulo, no Brasil. Possui livre acesso on-line
no site www.hcnet.usp.br/ipq/revista,
o que torna os artigos publicados facilmente acessíveis no mundo
todo. Tendo em vista a maior disseminação dos materiais aqui
publicados, boa parte dos artigos, deste suplemento, está disponível
também em inglês e pode ser baixada gratuitamente no site da
Revista de
Psiquiatria Clínica.
Busquei tornar este
suplemento em espiritualidade e saúde tão abrangente e
interdisciplinar quanto possível. Além de proporcionar uma
panorâmica sobre as principais linhas de pesquisa atualmente
desenvolvidas nesse campo, foram incluídos vários artigos sobre
temas relevantes, mas ainda pouco estudados em espiritualidade e
saúde. Tópicos que pesquisadores brasileiros potencialmente podem
dar uma contribuição única e especial receberam maior ênfase.
Alguns desses temas são os estados de transe e possessão, bem como
intervenções clínicas com base em espiritualidade. Para cumprir
essas metas, estou honrado em contar com artigos de vários dos
principais líderes de pesquisa em espiritualidade e saúde do
Brasil, Estados Unidos e Reino Unido. Gostaria de expressar minha
gratidão a todos os autores e pareceristas que colaboraram para este
suplemento e aos tradutores que fizeram a versão em português de
manuscritos redigidos originalmente em inglês. Especialmente, desejo
agradecer ao Professor Wagner Gattaz, editor da Revista
de Psiquiatria Clínica.
Senti-me profundamente honrado e desafiado com o convite para ser o
editor deste suplemento especial em espiritualidade e saúde.
Harold Koenig, provavelmente
o mais importante pesquisador em religião em saúde da atualidade,
abre este suplemento com um prefácio enfatizando a relevância do
campo e as contribuições atuais e em potencial dos pesquisadores
brasileiros. Os primeiros artigos abordam aspectos epistemológicos,
metodológicos e históricos de investigações relacionadas a
experiências espirituais, especialmente experiências conectadas aos
fundamentos universais da espiritualidade: xamanismo e estados
alterados da consciência. Gostaria também de destacar o artigo
sobre investigações em xamanismo, escrito por Stanley Krippner,
psicólogo e pesquisador com centenas de artigos publicados a
respeito de estados alterados de consciência. O principal objetivo
desses artigos introdutórios é proporcionar algum fundamento e
diretrizes para pesquisas futuras nesses temas tão controversos
quanto desafiadores.
Após esses artigos
teóricos, há cinco artigos apresentando evidências atuais sobre a
relação de religião/espiritualidade com questões clínicas, como
uso de drogas, dor, cuidados paliativos, saúde física, psicose e
qualidade de vida. Esses trabalhos são seguidos por um artigo de
Bruce Greyson, o mais destacado pesquisador norte-americano em
experiência de quase-morte. O seu texto aborda as experiências de
quase morte, suas implicações clínicas e teóricas para a relação
mente-corpo e o estudo da consciência.
Outros quatro artigos lidam
com um aspecto muito importante, mas pouco explorado da
espiritualidade e da saúde: intervenções clínicas espiritualmente
fundamentadas. Esse é um tipo de pesquisa que envolve várias
questões éticas metodológicas críticas. Leão e Lotufo Neto e
Elias et
al.
apresentam os resultados de ensaios clínicos muito inovadores e
criativos por eles conduzidos. Os desenhos desses estudos são muito
promissores e merecem posterior aprimoramento.
Após um interessante artigo
sobre as controvérsias em relação à definição e à medida de
espiritualidade, este suplemento especial termina com uma
autobiografia de Ian Stevenson, um dos pesquisadores mais importantes
e respeitados na pesquisa de vários tipos de experiência
espiritual. Após ter em mãos o seu manuscrito, foi com grande pesar
que recebi a notícia de seu falecimento, em fevereiro deste ano.
Espero que a publicação da sua autobiografia, neste suplemento,
possa ser um pequeno tributo à sua vida devotada à exploração dos
temas mais controversos usando as abordagens científicas mais
rigorosas.
Estudar cientificamente a
espiritualidade é uma empreitada muito entusiasmante e perigosa.
Essa é uma área repleta de preconceitos, preconceitos a favor e
contra a espiritualidade. A maioria das pessoas tem opiniões sobre o
tema, mas habitualmente essas opiniões foram formadas sem uma
análise aprofundada das evidências disponíveis. É fácil
deslizar, por um lado, para um ceticismo intolerante e uma negação
dogmática ou, por outro, para uma aceitação ingênua de afirmações
pouco fundamentadas. Não importa se possuímos crenças
materialistas ou espirituais, atitudes religiosas ou anti-religiosas,
necessitamos explorar a relação entre espiritualidade e saúde para
aprimorar nosso conhecimento sobre o ser humano e nossas abordagens
terapêuticas. Ao longo dessa empreitada desafiadora, seria útil
lembrar as palavras de Karl Popper, um dos filósofos mais
importantes do século XX:
"Na
busca da verdade, a melhor estratégia pode ser começar criticando
as crenças que nos sejam mais caras
(...) (p. 6). Eu
acredito que valeria a pena tentar aprender algo sobre o mundo, mesmo
se nessa tentativa aprendermos apenas que não sabemos muito. Esse
estado de ignorância aprendida pode ser útil em muitos de nossos
problemas. Pode servir para que todos nos lembremos que, mesmo
diferindo amplamente nas várias pequenas coisas que sabemos, em
nossa infinita ignorância, somos todos iguais"
(p. 29).*
*
Popper, K.R. Conjectures
and refutations
– The growth of scientific knowledge. London,
Routledge, 1995.
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