domingo, 30 de setembro de 2012

Espiritualidade e saúde: passado e futuro de uma relação controversa e desafiadora


Alexander Moreira-Almeida
Editor convidado. Professor adjunto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Diretor do Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde da UFJF (Nupes)
 
 
Desde tempos imemoriais, crenças, práticas e experiências espirituais têm sido um dos componentes mais prevalentes e influentes da maioria das sociedades. Profissionais de saúde, pesquisadores e a população em geral têm, cada vez mais, reconhecido a importância da dimensão religiosa/espiritual para a saúde. O número de estudos que investigam a relação entre espiritualidade e saúde tem crescido exponencialmente. Contudo, existem duas importantes limitações nesse campo em relação ao Brasil e outros países de língua portuguesa. Uma delas é que os estudos sobre espiritualidade e saúde realizados nesses países não são bem conhecidos no exterior. A segunda limitação é a ausência de uma revisão abrangente da literatura sobre espiritualidade e saúde, em português, que seja facilmente acessível a pesquisadores e clínicos de tais países.
Até onde sei, esta é a primeira revista médica em português a destinar um fascículo inteiro à espiritualidade e saúde. Espero que este suplemento especial ajude a sanar as duas limitações anteriormente citadas. A Revista de Psiquiatria Clínica é um periódico com revisão de pareceristas fundada em 1972 e publicada bimestralmente pelo Departamento de Psiquiatria da
Universidade de São Paulo, no Brasil. Possui livre acesso on-line no site www.hcnet.usp.br/ipq/revista, o que torna os artigos publicados facilmente acessíveis no mundo todo. Tendo em vista a maior disseminação dos materiais aqui publicados, boa parte dos artigos, deste suplemento, está disponível também em inglês e pode ser baixada gratuitamente no site da Revista de Psiquiatria Clínica.
Busquei tornar este suplemento em espiritualidade e saúde tão abrangente e interdisciplinar quanto possível. Além de proporcionar uma panorâmica sobre as principais linhas de pesquisa atualmente desenvolvidas nesse campo, foram incluídos vários artigos sobre temas relevantes, mas ainda pouco estudados em espiritualidade e saúde. Tópicos que pesquisadores brasileiros potencialmente podem dar uma contribuição única e especial receberam maior ênfase. Alguns desses temas são os estados de transe e possessão, bem como intervenções clínicas com base em espiritualidade. Para cumprir essas metas, estou honrado em contar com artigos de vários dos principais líderes de pesquisa em espiritualidade e saúde do Brasil, Estados Unidos e Reino Unido. Gostaria de expressar minha gratidão a todos os autores e pareceristas que colaboraram para este suplemento e aos tradutores que fizeram a versão em português de manuscritos redigidos originalmente em inglês. Especialmente, desejo agradecer ao Professor Wagner Gattaz, editor da Revista de Psiquiatria Clínica. Senti-me profundamente honrado e desafiado com o convite para ser o editor deste suplemento especial em espiritualidade e saúde.
Harold Koenig, provavelmente o mais importante pesquisador em religião em saúde da atualidade, abre este suplemento com um prefácio enfatizando a relevância do campo e as contribuições atuais e em potencial dos pesquisadores brasileiros. Os primeiros artigos abordam aspectos epistemológicos, metodológicos e históricos de investigações relacionadas a experiências espirituais, especialmente experiências conectadas aos fundamentos universais da espiritualidade: xamanismo e estados alterados da consciência. Gostaria também de destacar o artigo sobre investigações em xamanismo, escrito por Stanley Krippner, psicólogo e pesquisador com centenas de artigos publicados a respeito de estados alterados de consciência. O principal objetivo desses artigos introdutórios é proporcionar algum fundamento e diretrizes para pesquisas futuras nesses temas tão controversos quanto desafiadores.
Após esses artigos teóricos, há cinco artigos apresentando evidências atuais sobre a relação de religião/espiritualidade com questões clínicas, como uso de drogas, dor, cuidados paliativos, saúde física, psicose e qualidade de vida. Esses trabalhos são seguidos por um artigo de Bruce Greyson, o mais destacado pesquisador norte-americano em experiência de quase-morte. O seu texto aborda as experiências de quase morte, suas implicações clínicas e teóricas para a relação mente-corpo e o estudo da consciência.
Outros quatro artigos lidam com um aspecto muito importante, mas pouco explorado da espiritualidade e da saúde: intervenções clínicas espiritualmente fundamentadas. Esse é um tipo de pesquisa que envolve várias questões éticas metodológicas críticas. Leão e Lotufo Neto e Elias et al. apresentam os resultados de ensaios clínicos muito inovadores e criativos por eles conduzidos. Os desenhos desses estudos são muito promissores e merecem posterior aprimoramento.
Após um interessante artigo sobre as controvérsias em relação à definição e à medida de espiritualidade, este suplemento especial termina com uma autobiografia de Ian Stevenson, um dos pesquisadores mais importantes e respeitados na pesquisa de vários tipos de experiência espiritual. Após ter em mãos o seu manuscrito, foi com grande pesar que recebi a notícia de seu falecimento, em fevereiro deste ano. Espero que a publicação da sua autobiografia, neste suplemento, possa ser um pequeno tributo à sua vida devotada à exploração dos temas mais controversos usando as abordagens científicas mais rigorosas.
Estudar cientificamente a espiritualidade é uma empreitada muito entusiasmante e perigosa. Essa é uma área repleta de preconceitos, preconceitos a favor e contra a espiritualidade. A maioria das pessoas tem opiniões sobre o tema, mas habitualmente essas opiniões foram formadas sem uma análise aprofundada das evidências disponíveis. É fácil deslizar, por um lado, para um ceticismo intolerante e uma negação dogmática ou, por outro, para uma aceitação ingênua de afirmações pouco fundamentadas. Não importa se possuímos crenças materialistas ou espirituais, atitudes religiosas ou anti-religiosas, necessitamos explorar a relação entre espiritualidade e saúde para aprimorar nosso conhecimento sobre o ser humano e nossas abordagens terapêuticas. Ao longo dessa empreitada desafiadora, seria útil lembrar as palavras de Karl Popper, um dos filósofos mais importantes do século XX:
"Na busca da verdade, a melhor estratégia pode ser começar criticando as crenças que nos sejam mais caras (...) (p. 6). Eu acredito que valeria a pena tentar aprender algo sobre o mundo, mesmo se nessa tentativa aprendermos apenas que não sabemos muito. Esse estado de ignorância aprendida pode ser útil em muitos de nossos problemas. Pode servir para que todos nos lembremos que, mesmo diferindo amplamente nas várias pequenas coisas que sabemos, em nossa infinita ignorância, somos todos iguais" (p. 29).*
 
 
* Popper, K.R. Conjectures and refutations – The growth of scientific knowledge. London, Routledge, 1995.



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