Porque
o ser humano é capaz de atos tão heróicos, mas também de outros tão
cruéis? Porque fazemos sexo e fazemos guerra? Como indagava o grande
Cazuza, porque que a gente é assim?
No final da década de 1980, pesquisadores
de diversas áreas interessados no comportamento humano começaram a se
perguntar se a teoria da seleção natural de Darwin poderia ajudar a
responder esse tipo de pergunta, fundando uma das áreas mais influentes e
importantes da psicologia atualmente – a Psicologia Evolucionista.
Charles Darwin |
Darwin, ciente das implicações de sua teoria, conclui o seu livro A Origem das Espécies prevendo que “a psicologia será baseada em novos alicerces”.
Provavelmente devido ao receio das reações que o seu provocativo livro
causaria, Darwin não explorou muito a questão neste livro. Em livros
subsquentes como A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais e A Origem do Homem e a Seleção Sexual, Darwin trouxe evidências que indicavam a importância de sua teoria para a compreensão da natureza humana.
Muitas questões levantadas por ele ficaram em aberto e só foram retomadas por volta de 100 anos após a publicação de A Origem das Espécies
com o advento da Etologia, da Sociobiologia, da Ecologia Comportamental
e, mais recentemente, da Psicologia Evolucionista. Boyer e Heckhausen
(2002) consideram a Psicologia Evolucionista como um dos mais
importantes desenvolvimentos recentes nas ciências do comportamento.
A Nova Ciência da Mente
Até a década de 1980, grande parte dos
grandes teóricos na Psicologia já haviam de alguma forma aludido à
teoria da seleção natural quando falaram do ser humano, entre eles
William James, Freud e Skinner. Entretanto, nenhum deles explorou
devidamente as implicações diretas da teoria da seleção natural para o
entendimento do ser humano, se restringindo à homenagens superficiais
(Otta e Yamamoto, 2009).
Na biologia, campos como a Etologia e a Sociobiologia
já vinham produzindo grandes contribuições na Biologia Evolucionista
para o entendimento do comportamento de animais não-humanos e humanos,
usando como base o modelo de Darwin. O final da década de 1960 foi
marcado pelo surgimento da Ciência Cognitiva, uma área
interdisciplinar buscando unir os esforços dos recentes avanços na
neurociência, psicologia cognitiva, antropologia, ciência da computação,
filosofia e da pesquisa em inteligência artificial para compreender
como o ser humano processa informações.
Foi
da união entre a Ciência Cognitiva e a Biologia Evolucionista que
surgiu a Psicologia Evolucionista, uma área de pesquisa com o objetivo
de “estudar o comportamento humano como produto de mecanismos psicológicos evoluídos que dependem de inputs internos e ambientais para o seu desenvolvimento, ativação e expressão no comportamento manifesto” (Confer et al., 2010).
De forma simples, a Psicologia
Evolucionista tenta entender porque o ser humano se comporta de uma
determinada forma, se atentando para a função adaptativa desse
comportamento (Izar, 2009).
De acordo com Darwin (1859), variações de
características passadas adiante por progenitores á sua prole que
aumentassem a chance de um organimo sobreviver e se reproduzir seriam
transmitidas em maiores frequências para as gerações subsequentes do que
as variações alternativas. Esse processo resultaria em adaptações, subprodutos e “ruído genético”
(Confer et al., 2010) – adaptações são variações de características
herdadas que resolveram, de forma mais eficiente que outras
alternativas, problemas relacionados à sobrevivência e à reprodução (e.g.
medo de cobras perigosas;) subprodutos são variações de características
que não possuem uma função adaptativa mas persistem por estarem
inerentemente relacionados com adaptações (e.g. medo de cobras
inofensivas); ruídos genéticos são variações de características que
resultaram de mutação genética ou de eventos ambientais aleatórios (e.g.
medo do sol resultante de fatores genéticos e de desenvolvimento
aleatórios).
Uma das idéias mais importantes na Psicologia Evolucionista é que o ser humano possui uma série de adaptações psicológicas
– circuitos de processamento de informação que computam informações e
transformam essas informações em respostas funcionais com o objetivo de
resolver problemas específicos de adaptação (Confer et al., 2010).
“A mente humana é um conjunto complexo integrado de várias adaptações psicológicas funcionalmente especializadas que evoluíram como soluções de problemas adaptativos numerosos e qualitativamente distintos” (Cofner et al., 2010).
Dentro da perspectiva defendida por
muitos pesquisadores da Psicologia Evolucionista, o cérebro humano pode
ser entendido como um conjunto de sistemas computacionais resultante do
processo de seleção natural visando “resolver problemas adaptativos de
sobrevivência enfrentados por nossos ancestrais caçadores-coletores”
(Seild de Moura e Oliva, 2009). Nós, seres humanos, somos uma espécie de
primata com um cérebro avantajado que realiza uma série de complexas
operações computacionais para processar informações, e podemos chamar
esse conjunto de mecanismos de “mente”.
Tais adaptações evoluíram a partir dos
constantes desafios encontrados por nossos ancestrais em suas buscas por
comida, parceiros sexuais, segurança e cuidado parental. A Psicologia
Evolucionista preconiza que a função de todo o comportamento é o sucesso
reprodutivo, mas isso não quer dizer que essa é a forma que o ser
humano deve se comportar nem que esta meta seja de alguma forma
consciente ou planejada (Neuberg, Kenrick e Schaller, 2010).
Entretanto, sendo uma área ainda tão
jovem de pesquisa, a Psicologia Evolucionista é muito heterogênea e seus
pesquisadores têm oferecido diferentes propostas de estudo. Tem se
tornado comum na literatura se referir aos psicólogos evolucionistas no
sentido estrito e aos psicólogos evolucionistas no sentido amplo, sendo
os primeiros representados por adeptos da proposta de alguns dos
fundadores da disciplina como Cosmides e Tooby, e os segundos sendo
pesquisadores interessados pelo pensamento evolucionista na teorização
em psicologia, mas que não concordam necessariamente com a proposta de
Cosmides e Tooby (Mameli, 2007).
Porém, muitos autores de ambas abordagens
defendem que a teoria da evolução de Darwin não só pode como deveria
fazer pela psicologia o mesmo que fez pela biologia, integrando todas as
suas sub-áreas em uma mesma metateoria organizativa deste campo
(Duntley e Buss, 2008), a partir de uma mesma linguagem evolucionista
que traria coerência lógica e conceitual entre as diversas linhas de
pesquisa na psicologia e suas respectivas teorias (Dunbar e Barrett,
2007). Além disso, a teoria evolucionista tem um grande valor
heurístico, pois nos permite fazer predições precisas sobre como se
espera que pessoas se comportem se uma hipótese específica for
verdadeira.
Evidências
Numerosas
evidências empíricas derivadas da lógica evolucionista têm demonstrado a
importância e a originalidade da contribuição que a Psicologia
Evolucionista oferece para a compreensão do comportamento humano. Um
exemplo disso foi uma série de pesquisas que investigou o medo em seres humanos (Mineka & Öhman, 2002).
Esta série de estudos demonstrou
empiricamente que seres humanos e outros primatas possuem um
intensificado medo de cobras e aranhas: os resultados indicaram que a
presença de cobras e aranhas em uma tarefa visual capturou
automaticamente a atenção dos participantes muito mais que objetos
inofensivos; que seres humanos são mais rapidamente condicionados a ter
medo de cobras do que muitos outros estímulos, além dessa adaptação de
medo de cobras ser difícil de extinguir e poder ser relacionada com
circuitos neurais especializados.
Cobras, aranhas, altura e estranhos foram
perigosas ameaças para os primeiros seres humanos a viver nas savanas
africanas. Coincidentemente ou não, esses quatro estímulos aparecem
regularmente no topo das listas de fobias mais comuns, em uma frequência
muito superior do que ameaças atuais muito mais perigosas e importantes
para a sobrevivência, como carros e armas (Confer et al., 2010).
Outra importante série de estudos tem sido empreendida pela equipe da professora Nairne sobre memória adaptativa
(Nairne, Pandeirada & Thompson, 2008). A hipótese inicial da equipe
era de que sistemas evoluidos de memória deveriam ser sensitivos à
conteudos relacionados com a aptidão evolutiva da espécie humana.
Experimentos utilizando uma tarefa de priming envolvendo
cenários e uma tarefa de revocação surpresa identificaram que as
palavras apontadas pelos participantes como tendo relevância para a
sobrevivência na tarefa envolvendo cenários foram significativamente
mais relembradas do que palavras relacionadas à outros conteúdos.
Estudos subsequentes comparando o
processamento relacionado à sobrevivência com outras técnicas de
codificação da memória levaram a equipe à conclusão de que o
processamento de informações relacionado à sobrevivência é um dos
procedimentos de codificação mais robustos na área de pesquisa sobre a
memória humana.
Outro grande achado da Psicologia Evolucionista é o já bem documentado efeito Cinderela. Este
efeito propõe que existe uma probabilidade significativamente maior de
crianças adotadas ou criadas por pais não-biológicos de serem
maltratadas (i.e. violentadas, abusadas, mortas) por seus pais
do que crianças criadas pelos seus dois pais biológicos. A hipótese,
gerada a partir da teoria da solicitude discriminativa dos pais, tem
sido repetidamente corroborada em diversos contextos e com diversas
espécies (Daly e Wilson, 1985; 2005).
A hipótese de que a mente humana é composta por diferentes adaptações psicológicas ou módulos cognitivos
tem recebido grande suporte empírico, sendo que “não parece haver
atualmente quem rejeite seriamente a idéia de alguma especificidade de
processamento em domínios” (Seild de Moura e Oliva, 2009). As evidências
têm convergido de diferentes campos como as neurociências, a
Neurologia, a Psicologia Evolucionista, a Psicologia do Desenvolvimento e
a Psicologia Diferencial: crianças e adultos que possuem habilidades
gerais muito pobres mas demonstram habilidades muito sofisticadas em
domínios específicos (i.e. os autistic savant); bebês
que possuem competências especializadas desde muito cedo; pacientes com
lesões cerebrais que prejudicam alguma capacidade específica do
indivíduo sem que haja qualquer prejuízo em outras capacidades.
Pesquisadores da área de plasticidade
cerebral tem criticado a hipótese de modularidade, apresentando
evidências de que o encéfalo humano é muito flexível e que várias
capacidades humanas dependem de uma alta fluidez cognitiva. Entretanto,
as evidências nas neurociências tem corroborado tanto a hipótese de
modularidade como a de plasticidade – apesar de nenhuma função cerebral
ser executada plenamente e rigidamente por uma região específica do
encéfalo, nem todas as regiões encefálicas são igualmente responsáveis
por uma função específica (i.e. amígdala), ou seja, as duas hipóteses não são mutuamente exclusivas.
Cabe ressaltar que, por se tratar de uma
hipótese dentro de um nível de análise computacional, a hipótese de
modularidade da mente humana não tem qualquer compromisso com uma
divisão geográfica de funções no encéfalo ou com a tese localizacionista
no âmbito das neurociências. A natureza, a quantidade e a localização
encefálica destes módulos ainda são assuntos longamente debatidos e
estudados na literatura da área e que parecem ainda longe de serem
resolvidos.
Dificuldades, Confusões e Críticas
Apesar
de ser um campo muito novo de pesquisa e promissor para o entendimento
do ser humano, a Psicologia Evolucionista ainda enfrenta muitas
dificuldades empíricas, confusões e críticas. A área herdou uma
antipatia da Sociobiologia, visto que essa acabou sendo muito críticada
pelo suposto excessivo determinismo genético, o que a rendeu uma série
de críticos ferrenhos (i.e. Stephen Jay Gould). Todavia, a
maior parte das críticas dirigidas a um dos maiores nomes da
Sociobiologia, E. O. Wilson, por exemplo, foram infundadas e
precipitadas, mesmo que algumas críticas como a ausência de evidências
em algumas especulações dele fossem verdadeiras (Mameli, 2007).
Uma grande dificuldade enfrentada pelos
psicólogos evolucionistas é que boa parte das suas teorias dependem das
evidências que possuimos sobre como era o ambiente no qual os nossos
ancestrais evoluíram, ou seja, de informações sobre o nosso Ambiente de Adaptação Evolutiva.
Este conceito é ao mesmo tempo um dos mais importantes e um dos mais
polêmicos na área, visto que possuimos poucas evidências para conseguir
descrever com grande precisão quais foram as características do ambiente
seletivo no qual se desenvolveram as nossas capacidades mais complexas.
Além disso, outra dificuldade com o Ambiente de Adaptação Evolutiva
existe na justificativa para definir o seu período histórico como sendo o
Pleistoceno (Mameli, 2007).
As evidências disponíveis indicam que os primeiros homo sapiens sapiens
viveram nas savanas africanas, à cerca de 150 mil anos atrás, em
pequenos grupos cooperativos onde muitos eram parentes (Richerson &
Boyd, 2005), em um ambiente complexo e de difícil navegação, onde
conseqüentemente os indivíduos eram forçados a cooperar para completar
atividades necessárias à sobrevivência como localizar e proteger fontes
de comida e abrigo, defender-se contra predadores e criar a prole
(Lakin, Jefferis, Cheng e Chartrand, 2003).
Muitas críticas têm sido feitas também à
ênfase de muitos pesquisadores da área no adaptacionismo, visto que
outros processos seletivos como a exaptação, a deriva genética, a
seleção sexual e a construção de nicho têm sido negligenciados pelos
psicólogos evolucionistas. Como muitos aspectos do nosso ambiente de
adaptação mudaram radicalmente do ambiente das savanas africanas, alguns
autores argumentam que nem todos os comportamentos humanos atuais podem
nos informar sobre os comportamentos dos seres humanos que viveram no
Pleistoceno ou sobre a aptidão que estes comportamentos conferiram aos
nossos ancestrais, visto que os mesmos mecanismos psicológicos podem
estar envolvidos na produção de diferentes comportamentos em diferentes
ambientes e que boa parte dos nossos comportamentos provavelmente são
novidades evolutivas por conta da construção de nichos diferenciados ao
longo da história evolutiva da nossa espécie (Mameli, 2007).
Seria impossível (ou ao menos
inconveniente) tentar esgotar todas as grandes contribuições,
dificuldades e desafios enfrentados pela Psicologia Evolucionista.
Muitos outros textos explorando de forma mais específica os temas dentro
desta área haverão de vir! A quantidade de simplificações e críticas
sem embasamento que são ditas sobre a Psicologia Evolucionista é
enorme. Um bom texto feito pela Isabella Bertelli e pelo Marco Varella
que trata deste assunto pode ler lido “aqui“. Fica aqui também a indicação do ótimo blog do Marco Varella no scienceblogs sobre psicologia evolucionista, o “Marco Evolutivo“.
A despeito das dificuldades enfrentadas
pela área, inerentes à qualquer empreendimento científico, tudo indica
que a Psicologia Evolucionista veio para ficar (Dunbar e Barrett, 2007).
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