Nós, humanos, iniciamos nossa vida na concepção com um única
célula, o zigoto, produzido pela união de um óvulo e um espermatozóide.
Através de um processo maravilhoso de multiplicação e diferenciação
celular, esse zigoto dá origem a 10 trilhões de células de mais de uma
centena de tipos variados no adulto.
Fato
: o Projeto Genoma Humano, terminado em 2003, elucidou toda a seqüência de bases do genoma humano.
Conseqüência
: temos todo o mapa genético para poder entender o corpo humano na saúde e na doença, certo? Erradíssimo!!!
O corpo humano na verdade contém 100 trilhões de células, e não meros 10
trilhões. O que acontece é que 90% das células do nosso corpo são
microrganismos que vivem simbioticamente em nosso intestino, estômago,
boca, nariz, garganta, aparelho respiratório e sistema geniturinário. As
bactérias que constituem essa microbiota derivam seus nutrientes de
nós, mas pagam pela hospedagem se encarregando de várias tarefas
essenciais para nossa saúde, incluindo a proteção contra patógenos e a
conversão metabólica de nutrientes.
Não quero induzir os leitores a uma crise de identidade, mas
nosso corpo é de fato mais microbiano do que humano. Ele constitui um
verdadeiro sistema ecológico com grande biodiversidade, um
superorganismo. Agregado ao genoma humano propriamente dito, temos esse
genoma bacteriano suplementar, chamado “microbioma”, que contém cem
vezes mais genes do que o nosso próprio.
A grande novidade na praça é que um grupo de cientistas, com o
patrocínio dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos,
deu recentemente o pontapé de partida ao “Projeto do Microbioma Humano”.
Considerando que estamos falando de milhares de espécies de bactérias,
como é tecnicamente possível fazer o seqüenciamento desse genoma
coletivo?
Metagenômica
Como escreveu Stephen Jay Gould no seu excelente livro
Full house: a difusão da excelência de Platão a Darwin
, as bactérias são – e sempre foram – as formas dominantes de
vida na Terra. A história das bactérias é a própria história da vida no
planeta, desde que os primeiros fósseis – bactérias, é lógico – foram
emparedados em rochas, há mais de três bilhões e meio de anos.
Ocorre que até hoje catalogamos apenas uma minúscula fração
de todas as bactérias existentes, pois nosso conhecimento delas é
totalmente dependente do cultivo e estudo em laboratório. No entanto,
talvez a maioria delas não seja cultivável. Recentemente foi
desenvolvida uma nova estratégia para capturar e estudar toda a
diversidade dos microrganismos na Terra, a metagenômica. A proposta é
trocar os meios de cultura do laboratório e a lente do microscópio pela
tecnologia da genômica e da bioinformática.
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O notável cientista J. Craig Venter pilotando seu iate-laboratório
Sorcerer II
. Venter é um iconoclasta, mas possivelmente o
maior cientista biomédico americano da atualidade. Entre suas muitas
conquistas científicas, podemos destacar: desenvolvimento da metodologia
de etiquetas de seqüências transcritas (ESTs) para estudar o
transcriptoma humano, desenvolvimento do seqüenciamento genômico total
em “tiro de cartucheira” (
shotgun sequencing
), responsável pelo primeiro genoma completo (
H. influenzae
em 1995), co-responsável pelo seqüenciamento do
genoma humano, pioneiro da biologia sintética e da metagenômica. Em 1992
Venter esteve no Brasil como nosso convidado para participar da
Conferência Sul-Norte do Genoma Humano em Caxambu. Logo depois, nosso
grupo de pesquisa na UFMG iniciou uma colaboração com Venter que
permitiu começar o primeiro esforço genômico brasileiro, o mapeamento de
genes do parasito
Schistosoma mansoni
. Venter foi co-autor de nossa primeira
publicação
com os resultados do projeto (foto: Craig Venter Institute).
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A estratégia metagenômica foi idealizada pelo legendário “genomicista”
americano J. Craig Venter. Ele transformou seu iate pessoal
Sorcerer II
em um laboratório marinho e, em um projeto-piloto, examinou
espécies de bactéria vivendo na água do Mar de Sargaços, circundando
Bermuda no Atlântico norte, cujas águas paradas possibilitam o
desenvolvimento de imensa quantidade de algas.
A tática experimental foi simplesmente colher amostras de
água do mar e passá-las através de filtros bacterianos. O DNA das
bactérias presas no filtro foi, então, extraído, fragmentado de maneiras
diferentes e submetido ao seqüenciamento de DNA
à la
“tiro de cartucheira” (
shotgun sequencing
). As leituras foram, então, montadas como um quebra-cabeça e
as espécies de bactérias enumeradas e caracterizadas por sofisticadas e
poderosas ferramentas bioinformáticas. No estudo piloto, Venter
identificou 1,2 milhões de genes em cerca de 1800 espécies de bactérias
diferentes.
Na esteira desse sucesso, Venter e sua equipe agora estão dedicados à tarefa de circunavegar a Terra no
Sorcerer II
colhendo e caracterizando metagenomicamente amostras de todos
os mares. Os resultados têm sido espetaculares. Em março deste ano, por
exemplo, eles publicaram um artigo no periódico
PLoS Biology
que descreve um verdadeiro
tour de force
(todos os artigos da Expedição de Coleta Oceânica Global de Venter podem ser obtidos clicando
aqui
).
Esse artigo relata o seqüenciamento de mais de 6 bilhões de
pares de base de DNA (duas vezes o genoma humano) e a identificação de
mais de 6 milhões de proteínas diferentes. Isso equivale a mais que o
dobro do número de todas as proteínas descritas e presentes em bancos de
dados até 2007. Várias das novas proteínas descobertas não tinham
similaridade com qualquer outra descrita até hoje e parecem representar
famílias protéicas completamente novas!
O Projeto do Microbioma Humano
Para o projeto do microbioma humano a mesma estratégia
metagenômica vai ser utilizada, só que sem precisar sair de casa. Em vez
das águas dos sete mares, serão utilizadas prosaicas amostras de fezes,
saliva, secreções vaginais e esfregaços de pele humana.
Um estudo piloto do microbioma foi realizado nos Estados
Unidos pela equipe do antigo Instituto para Pesquisa Genômica
(recentemente renomeado Instituto Craig Venter) e
publicado em 2006
na
Science
. Foram estudadas amostras de fezes de dois adultos sadios
que não haviam recebido antibióticos por mais de um ano. A partir daí os
pesquisadores geraram mais de 60 mil seqüências de DNA de cada
indivíduo.
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Um estudo piloto do microbioma sugere que a
Methanobrevibacter smithii
, retratada acima, é uma arqueobactéria
metanogênica comum no intestino humano (foto: National Research Council
Canada).
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Foram encontrados centenas de tipos bacterianos, mas a maioria pertencia
a apenas duas divisões chamadas Firmicutes e Bacteroidetes. Além disso,
uma arqueobactéria metanogênica (
Methanobrevibacter smithii
) era muito comum. Isso demonstrou ao mesmo tempo grande
diversidade e grande especificidade da microbiota intestinal, pois são
conhecidas nada menos que 70 divisões de bactérias e 13 divisões de
Archeae.
Podemos perguntar se o nosso microbioma é específico e
individual como o nosso genoma. Existe em nós uma “impressão digital”
bacteriana? Os estudos feitos até agora parecem indicar que sim. Os
resultados revelaram que a composição da microbiota intestinal varia
bastante entre indivíduos, mas que a variação ocorre primariamente entre
espécies e subespécies de Firmicutes e Bacteroidetes. Também foi
identificado que no hábitat intestinal algumas espécies de bactérias
parecem ser residentes permanentes (componentes autóctones), enquanto
outras aparentemente são transeuntes (componentes alóctones), de
passagem junto com comida, água etc.
Isso faz sentido teórico. A persistência de bactérias em
nossa pele e cavidades corporais depende de interação com componentes da
membrana de nossas células, os quais são frequentemente polimórficos,
dependendo do nosso genoma. Assim, nossa individualidade genômica pode
determinar uma individualidade microbiômica.
Mas como é construído o microbioma? No útero, não temos
nenhuma bactéria no nosso corpo. Começamos a adquirir nosso “eu
bacteriano” no próprio processo de nascer, pelo contato com
microrganismos do canal vaginal materno. Em um
artigo
recente, uma equipe da Universidade de Stanford, nos Estados
Unidos, estudou o processo de aquisição da flora microbiana intestinal
por 14 bebês.
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Bactérias na superfície do intestino grosso
humano. Foto: Gross L (2007) Human Gut Hosts a Dynamically Evolving
Microbial Ecosystem.
PLoS Biol
5(7): e199. |
Foi observado que no final do primeiro ano de vida as
crianças haviam atingido um padrão essencialmente adulto de diversidade
bacteriana, mas que havia diferenças significativas entre elas. Os dois
bebês com a flora mais parecida eram dois gêmeos dizigóticos. Isso
sugere que o ambiente também pode ser instrumental em determinar a
natureza da nossa microbiota.
A ecologia da saúde e da doença
A visão do corpo humano como um superorganismo pode nos
permitir ver saúde e doença em termos de equilíbrio ou desequilíbrio
ecológico. Sabemos que os microrganismos sintetizam vitaminas essenciais
para o nosso metabolismo e possibilitam a digestão de alguns
nutrientes.
Não temos, por exemplo, a maquinaria química necessária para
quebrar totalmente a celulose das plantas em seus constituintes
elementares, mas as bactérias nos fornecem enzimas chaves deste
processo, como a celobiase. Além disso, a nossa microbiota ocupa nichos
ecológicos no nosso corpo que poderiam ser colonizados por patógenos.
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Um estudo feito em 2006 apontou diferenças
significativas entre a proporção de bactérias do grupo das Firmicutes em
indivíduos magros e obesos (arte: Laura Kyro, Zhen He, Largus Angenent e
Jeffrey Gordon).
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