Análise Crítica:
Mesmo os menos versados na psicanálise e na vida e carreira de seus
principais teóricos se sentirão atraídos pela ambiciosa premissa de Um Método Perigoso:
um ensaio abundante em discussões e críticas entre Sigmund Freud, Carl
Jung, Sabine Spielrein e Otto Gross a respeito das bases da teoria
sexual daquele, com generosas pinceladas sobre inconsciente, ego e a
repressão dos desejos, além de contar com um intenso e antiético
envolvimento amoroso. Assim, é decepcionante que o novo filme do diretor
canadense David Cronenberg desabe vítima da incapacidade de elaborar
fundações sólidas o suficiente para sustentar o debate entre aquelas
personalidades históricas, ao passo que opta por retê-los num cauteloso
invólucro, obviamente insuficiente para conter a transbordante natureza
do conteúdo em destaque.
Escrito por Christopher Hampton a partir de sua peça teatral e do livro
de John Kerr, o roteiro apresenta a histérica Sabine (Knightley),
internada pelos pais no hospital psiquiátrico de Burgholzli
na Suíça onde o psiquiatra Jung (Fassbender) clinicava. Tratando-a
segundo os preceitos da psicanálise - a qual ele se refere por "a cura pela fala"
-, Jung logra êxito na recuperação de Sabine que viria posteriormente a
se tornar sua assistente, amante e uma das primeiras psicanalistas do
mundo. Ademais, o método adotado o remeteria ao renomado Freud
(Mortensen), e depois de 13 horas de conversa ininterrupta, ambos se
encantam mutuamente estabelecendo uma cordial relação profissional.
Essa amizade, contudo, viria a se deteriorar, mormente fruto às
desavenças provenientes dos intrigantes embates intelectuais entre os
dois. Se Jung criticava o rígido pragmatismo de Freud que considerava as
manifestações humanas intrínseca e exclusivamente relacionadas à
sexualidade e aos ferozes impulsos que a propelem, Freud discordava e
debochava da dimensão espiritual com a qual Jung explicava alguns
fenômenos psíquicos. Isso os levaria a um discussão não tão implícita
envolta de cientificidade e religiosidade (como se estes termos pudesse
coexistir pacificamente e sem atribulações), onde Freud almejava
resguardar a jovem ciência da psicanálise do descrédito de seus
agressores protegendo-a no sólido casulo da teoria sexual, enquanto um
insatisfeito Jung ousava flertar com o misticismo da lenda de Siegfried,
superando as reprimendas do pai da psicanálise. Num último momento, na
eminência das grandes guerras, Freud, judeu, e Jung, esteriótipo do
ariano alemão, viriam a se ver em faces opostas da história, como
perseguido e perseguido.
Se falei em repressão, é porque este é um dos temas principais da
narrativa, encontrando o respaldo no anárquico conceito de liberdade de
Otto Gross (Cassel). Reputa-se à essencial ambivalência do ser humano, à
simultaneidade de dois sentimentos opostos na psiquê. De um lado, a
tendência a se amoldar aos preceitos morais e sociais de uma sociedade
conservadora; do outro, a pertinaz ânsia de quebrar as regras, como o
faz Sabine no seu insano amor masoquista. Esses debates provocados nas
discussões entre as figuras centrais representam o que há de melhor na
narrativa, e é impossível não destacar que David Cronenberg desenvolveu
sua carreira no terror psicológico oriundo de personagens mentalmente
instáveis, o que faz com que Um Método Perigoso representa apenas um passo lógico para o cineasta.
Logo, é decepcionante constatar o desleixo de Cronenberg com o material
na adoção de uma cronologia frouxa e deficiente incapaz de justificar as
mudanças agudas de comportamento, sobretudo as de Jung. Falta de zelo
que fica evidente nos 15 minutos iniciais quando Cronenberg não encontra
meios de disfarçar elegantemente a esquemática ida de Jung à guerra e
seu retorno súbito. Nesse sentido, não se espante quando, depois de se
revelar a mais atormentada das pacientes, Sabine surja, minutos após, na
posição de assistente do renomeado médico discutindo serena e
comedidamente seu sonho de adentrar na faculdade de medicina. Aliás, é
obrigatório o diálogo expositivo a respeito de um sonho não contado para
identificarmos o exato momento da ruptura definitiva de Jung e Freud,
algo que a narrativa sequer faz questão de apontar detidamente.
Mais inteligentes são os enquadramentos que, em momentos-chave,
encontram os personagens convenientemente sentados detrás do outro
reproduzindo a técnica da psicanálise vista logo na primeira sessão de
Sabine. É o que acontece na revelação dos sonhos em um barco que
ultrapassa os limites de uma conversa profissional e penetra na disputa
de interpretações - e egos - entre Freud e Jung. Feliz no rico design de
produção e contando com a boa fotografia de Peter Suschitzky, a qual
confere uma perturbadora e calma melancolia nas tomadas externas, a
equipe técnica equivoca-se pontualmente nos péssimos efeitos especiais
usados para recriar a orla de Nova York durante a chegada dos dois
psicanalistas a um congresso (que, assim como outros incidentes
narrativos, é atropelado).
Mas, se a narrativa é desapontante e não faz jus aos nomes dos
personagens, o mesmo não se pode afirmar dos intérpretes. A começar pelo
talentoso Michael Fassbender cujo Jung exibe um arco dramático que o
leva da submissa mansidão às teorias de Freud à posição de voraz
questionador, e a tendência a adverbiar (imensamente e especialmente são
algumas das palavras recorrentes no seu vocabulário) demonstra a
fraqueza dos argumentos que ele expunha no início. Por sua vez, Viggo
Mortensen, na sua terceira parceria com Cronenberg, transforma Freud em
um homem de gestos calculados, cujas discretas inflexões faciais e a voz
ponderada denotam a frieza e controle emocional empregados no seu
ofício. Referindo-se a si próprio na terceira pessoa, sinal de vaidade
implicitamente corroborada ao se referir a Jung como "filho herdeiro", Freud revela-se digno da condição quase divina assumida por alguns acadêmicos e é o personagem mais interessante em cena.
E eis que chegamos a questionável composição de Keira Knightley:
totalmente entregue ao papel, expondo a histeria de Sabine em contorções
bruscas, na curvatura do corpo e projeção da mandíbula, Keira encontra
no comportamento
animalesco a manifestação de uma sexualidade reprimida. Porém, a
narrativa enquanto confere peso demasiado a Sabine, atribuindo o papel
de estopim da ruptura de Jung e Freud, falha em fluidamente acompanhar a
sua evolução tornando inverossímil acreditar que aquela explosão de
instinto tenha se transformado em uma renomada psiquiatra.
Diante desse irreparável defeito, Um Método Perigoso é apenas um
filme para acadêmicos da psicologia, a triste constatação de que os
ícones da psicanalise se mantêm distantes daqueles que mais anseiam por
eles: o grande público.
Fonte: http://www.cinemacomcritica.com.br/2012/03/um-metodo-perigoso.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário