quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Vídeo: Fenomenologia e existencialismo





Uma das contribuições mais fundamentais da fenomenologia para a psicologia é a compreensão do modo de ser do homem como "existência", tal como foi elaborado por Heidegger (1927/1989) em sua obra "Ser e Tempo". Embora de uso corrente nas chamadas psicologias fenomenológico-existenciais e nas correntes humanistas, e mesmo tendo ganhado estatuto conceitual em outros discursos clínicos, a noção de "existência "carece ser permanentemente problematizada com relação a sua compreensão própria, pois a radicalidade que a torna um diferencial na história recente das ideias filosóficas e psicológicas tende a ser facilmente perdida em prol de um
nivelamento com as concepções naturalistas mais usuais sobre o ser do homem.
Este artigo tem como objetivo principal refletir sobre esse nivelamento conceitual e esclarecer a compreensão radical da noção de "existência", possibilitando pensar o direcionamento próprio de uma prática psicológica clínica a partir dos pressupostos da Analítica da Existencial proposta por Heidegger. Desse modo, busca-se contribuir para apontar as limitações e as possíveis inadequações da aplicação de concepções decorrentes da perspectiva científico-natural à psicologia, com uma consideração insuficiente à especificidade do modo de ser do homem. A existência exige uma reflexão própria, o que não significa uma oposição reativa ao saber científico, mas "chegar a uma relação refletida com a ciência e verdadeiramente meditar sobre seus limites "(Heidegger, 2001, p.45).

A noção fenomenológica de existência
A noção de "existência "só pode ser devidamente compreendida à luz de uma atitude ou modo específico de atenção, que não é aquele em que nos encontramos naturalmente na vida cotidiana, nem mesmo quando empregamos a racionalidade científica para abordar a realidade. A expressão husserliana "atitude natural "denomina nossa tendência de tomar todas as coisas que encontramos no mundo como se já sempre estivessem dadas aí, indiferentes à nossa relação de sentido com elas. O próprio sujeito é tomado como algo dado dentro de um mundo que lhe é anterior. A diferença entre o modo de ser do sujeito e o das coisas restringe-se, a partir de uma ontologia cartesiana, em ter ou não uma natureza extensa, mas, para aquém dessa diferença, ambos são ainda simplesmente dados dentro do mundo. Colocar-se numa perspectiva fenomenológica é suspender essa suposição "natural "de uma realidade "em si", realizar uma epoché, retornando para as coisas apenas enquanto dadas à experiência; é envolver-se em um modo de atenção em que experienciamos com toda evidência que o mais "concreto "não é essa suposta "realidade-em-si "do mundo, o mais "concreto "é sempre o próprio acontecimento imanente da "experiência "enquanto dinâmica constitutiva de sujeito e objeto. O conhecimento do mundo nos inclui e dá-se a partir do nosso ser-no-mundo. Assim, na noção de mundo "não se trata da natureza enquanto realidade objetiva (estudada pela ciência positivista), mas do mundo que se dá na relação, que se mostra como fenômeno primeiro e que pode ser depois elaborado pelo pensamento "(Amatuzzi, 2009, p.95).
Para uma aproximação compreensiva desse plano de constituição dos entes, que não é, ele mesmo, ente algum, pode-se recorrer a um koan da tradição Zen Budista, conhecido e evocado por Heidegger em um diálogo ocorrido em 1958, em Freiburg, com o filósofo japonês da escola de Kioto e mestre zen da tradição Rinzai, Sh. Hisamatsu (Saviani, 2005). Trata-se de uma pergunta que, ao invés de levar a uma resposta específica, visa deslocar a perspectiva de compreensão do interrogado. O mestre bate palmas e pergunta ao discípulo: "Qual é o som que surge de apenas uma das mãos? "(Samten, 2001, p.41). Quando se bate a mão contra algo como uma mesa, um livro ou um copo de vidro, identificam-se diferentes sons que são atribuídos aos próprios objetos. Dizemos: este é o som da madeira, este do vidro, etc. Quando batemos uma mão espalmada contra outra, de qual das mãos seria o som, sendo am-bas iguais? Percebe-se então que o som não é atributo de um objeto, surge da relação. Ampliando essa reflexão, pode-se ver que todas as atribuições de qualidades que fazemos às coisas, como se fossem características inerentes a uma substância, são frutos de uma simplificação ingênua. Antes de qualquer substância extensa ou psíquica, inferida como suporte de qualidades, há uma dinâmica de "originação interdependente "entre sujeito e objeto.
Podemos aproximar, com as devidas reservas, essa concepção budista de originação interdependente e a compreensão heideggeriana sobre a cooriginariedade de homem e mundo. Essa abertura originária de sentido, jamais objetivável como algo dentro de um mundo pré-existente, é aquilo que Heidegger denominou como "existência", "ser-aí "(Da-sein) ou ser-no-mundo. O existir humano não pode ser considerado como algo simplesmente presente e encerrado em si; "ao contrário, esse existir consiste em meras possibilidades de apreensão que apontam ao que lhe fala e o encontra e que não podem ser apreendidas pela visão e pelo tato "(Heidegger, 2001, p.33). Existência, portanto, não é o fato bruto e indiferenciado de ser, como oposição metafísica ao não ser, significa uma abertura originária ao ser dos entes, enquanto pré-compreensão do ser enquanto tal. Desse modo, podemos interpretar a "existência "como pura possibilidade no horizonte intransponível da temporalidade. Isso não se confunde, de modo algum, com a reversão de uma postura realista para um idealismo, conforme certas interpretações da fenomenologia estimuladas, segundo Barreto (2006), por algumas formulações do próprio Husserl. "Idealidades", como concebidas pelos idealismos filosóficos, não são menos "naturais "que "empiricidades". Isto é, objetos ideais, embora não extensos, são ainda concebidos como "coisas-em-si", quer de natureza espiritual, racional ou psicológica. Para uma atitude fenomenológico-hermenêutica, os objetos ideais não são nem mais nem menos reais que os objetos empíricos, são apenas diferentes modos de ser daquilo que se dá à experiência.
Esse deslocamento da compreensão não se reduz a um mero movimento do intelecto e isso fica óbvio no vocabulário fenomenológico de "Ser e Tempo". Heidegger designa como "afinação "(Stimmung) ou "disposição "(Befindlichkeit) o modo como o homem, enquanto abertura de sentido, "sintoniza "os entes que lhe vêm ao encontro no mundo. Assim, "o homem pode se relacionar de diferentes modos com os entes que se apresentam a ele [...] mesmo a indiferença é um modo de relação "(Sá & Mattar, 2008, p.198). Para ele, a disposição privilegiada, a partir da qual o homem pode apreender seu modo de ser próprio enquanto "existência, "é a angústia. Ela remete o homem à sua singularidade, ao seu próprio poder-ser-no-mundo. Tem, portanto, uma função liberadora, podendo arrastar o homem para a propriedade de seu ser enquanto possibilidade de ser, afastando-o da perspectiva impessoal e objetivante da ocupação cotidiana. Há na angústia um sentimento de estranheza, retirando o homem da aparente segurança e da experiência de bem-estar proveniente do nivelamento de seu ser a partir daquilo com que se ocupa no mundo. Pela disposição da angústia, o homem é "retirado da publicidade e da decadência e lhe são reveladas a propriedade e a impropriedade como possibilidades de seu ser "(Vásquez, 1999, p.152). Quando habitada sem os subterfúgios da impessoalidade mediana, a angústia "[...] desempenha um papel similar à Epoche de Husserl, despindo as coisas de sua significação habitual "(Inwood, 2002, p.95).
Diante dessas considerações, podemos entender o equívoco de alguns nivelamentos correntemente efetuados com a noção de "existência". O mais comum, talvez devido a certa má compreensão do existencialismo francês, consiste na mera inversão da tradição metafísica "essencialista". Pensa-se que a valorização da existência concreta, factual, encarnada, é apenas uma subordinação do "espiritual "ao "material", do "eterno "ao "histórico", mas subsiste um resíduo de "simplesmente dado "nesse polo oposto às essências que seria a "existência concreta". A condição de "estar-lançada "da existência, sua facticidade temporal, incluída aí toda a corporeidade, jamais se confunde com um contexto simplesmente dado, no qual se encontra um sujeito livre apenas para interpretar ao seu modo essas condições dadas. A facticidade jamais pode ser acrescentada à existência, nem, muito menos, a liberdade é algo acrescentado a um estar lançado fáctico. Enquanto projeto (Entwurf ), a existência já é sempre descentrada a partir de sua facticidade; a liberdade não se opõe ao ser-situado-junto-ao-mundo, antes lhe é condição de possibilidade. Da mesma forma, a historicidade da existência não pode significar o estar meramente "no tempo", sendo determinada por eventos temporais.
A objetivação do tempo e da história como uma "moldura "na qual a existência sempre se encontra já é fruto de uma distração da atenção fenomenológica, que faz com que retornemos a uma compreensão natural da existência como algo dado dentro de um mundo. Assim como existência é ser-no-mundo e não algo dentro do mundo, a temporalidade existencial jamais significa ser dentro do tempo. "Dentro "indica uma relação de justaposição de "coisas "simplesmente dadas num determinado lugar do espaço. Ao contrário, ser-no-mundo refere-se a um fenômeno de unidade constituído ontologicamente pelos "existenciais". Assim, ser-no-mundo, ser junto ao mundo é um existencial, um modo de ser-em, que só pode "tocar "um ente se pelo seu modo de ser originário já lhe houver sido descoberto um mundo. Heidegger afirma em "Ser e Tempo "que "o ser-em é, pois, a expressão formal e existencial do ser da pre-sença (Dasein) que possui a constituição essencial de ser-no-mundo "(Heidegger, 1927/1989, p.92). Assim como a existência é ser-no-mundo e não algo dentro do mundo, a temporalidade existencial jamais significa ser dentro do tempo. Se "existir "é ser no mundo como abertura de sentido em que já sempre nos vêm ao encontro os entes, existir é temporalizar e espacializar. Nessa direção, a "existência "enquanto "ser-aí "é a clareira do ser, a abertura na qual o ente destituído de mundo poder vir ao encontro e revelar-se em seu ser, vir à luz. O homem é um ente voltado para "fora "(ec-sistência), cuja essência consiste em ter que compreender a si mesmo, neste fora, como possibilidade de ser ou não ser ele mesmo.
Outro nivelamento comum é aquele que toma a noção de ser-no-mundo como uma simples valorização do caráter relacional, holístico, da condição humana, mas fazendo subsistir ainda um mundo simplesmente dado no interior do qual o homem se encontra sempre em uma rede de relações constitutivas de sua existência. Para esse tipo de interpretação, nomear o homem como ser-no-mundo seria análogo à afirmação de que ele é essencialmente um ser social, intersubjetivamente constituído. Por mais dinâmica e complexa que seja a representação desse modo de subjetividade holisticamente produzida, trata-se ainda de uma objetivação que não traduz a experiência radical do nosso "si-mesmo "como mero "poder-ser", abertura originária de sentido; condição ontológica, não objetivável, de qualquer objetivação. Tais representações objetivantes seguem a orientação da episteme hegemônica da modernidade ocidental que mapeou e sinalizou o caminho das ciências modernas. Inserindo-se nessa tradição metafísica de conhecimento, que só pode to-mar como ente digno de interesse o que pode ser objetivado, a psicologia constituiu-se como ciência: buscou a plena elucidação e controle das realizações da existência e não considerou a condição ontológica do existir humano fecundado pelo mistério do ser e do tempo.
No entanto, não queremos com essas observações impugnar ou desvalorizar as influências que a noção heideggeriana de "existência "exerceu sobre as diversas áreas e correntes da psicologia, apenas ressaltar que, dissociada de uma atitude fenomenológica, tal noção perde seu sentido ontológico próprio. A noção de "existência "aponta para o modo de ser do homem como abertura originária ao ser, possibilitando uma reflexão sobre a experiência clínica orientada pelos pressupostos ontológicos, não metafísicos, referentes à experiência humana, elaborados pela analítica existencial heideggeriana.

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